sábado, 28 de outubro de 2023

Carta à inexistência

    Somos esta orgânica consciência de formas que se desfaz na terra. Compostagem de ideias, agonias e celebrações. Dissipação, corrosão silenciosa em permanente atividade. Neste instante... consome sem folga, sem desculpa de domingo. Alerto para o movimento dos corpos e para a sua carência de sentido. Alerto para o comprimento do fim e a quantidade de eternos que se amontoam na rotina de fins e não se estranham. Encerram-se com o hábito e escondem-se em carpintarias.
    A arte de ‘desconsciencializar’ deveria ser diferente. A defunção não nos devia extrair da ideia sem aviso. Tirar-nos do ser sem comunicação prévia é desumano. Exijo humanidade na morte! Essa amorfa função de separar a energia da corporalidade. O diálogo seria o ideal. A morte, em sua plenitude amoral, convidaria os seres, enquanto vivos, a uma última conversa. A sua voz desformosa cobriria seus últimos dias. Assim a consciência era substituída aos poucos. A hipnose do fim invadiria os pensamentos.
    A educação para a inexistência solucionaria qualquer fim mal prevenido. Agendar a passagem arrumaria a nossa decadência. Não a poderíamos adiar eternamente, já que a eternidade é a única bonificação dos mortos. A morte estaria à nossa espera dando-nos algum tempo de agilização. Seguia-nos carregando os nossos movimentos, os nossos ossos e dando-nos o conforto necessário.
    A educação para a inexistência só traria benefícios. Por exemplo, o morto poderia ir por seu próprio pé para o cemitério. A morte poderia guiá-lo para o seu caixão, como uma mãe que leva o seu filho para o seu derradeiro sono. O fim seria cronometrado, a voz sussurrada da morte daria nossa contagem e a dormência do seu peso turvaria a nossa visão, a nossa fala e a nossa noção. Morrer assim seria educado, facilitaria a despedida e organizaria a emoção. 
    Remeto, assim, este meu pedido à morte.