terça-feira, 28 de outubro de 2014

Sinestesia

impossível,
há um provérbio recitado que afirma que sou impossível,
no impróprio e indigesto passar das horas,
porque penso.
como é raro amanhecer nesta escassa grandeza de vícios,
neste pesado correr que nos embebeda por dentro,
sem olhar para o brilho que nos incumbe,
o brilho de que são feitos nossos olhos.
olhar,
ver que há uma paisagem por descobrir,
a nossa paisagem, composta pelas nossas próprias cores.
do branco ao negro,
somos a alegria e a tristeza,
num compêndio de cores que vamos descobrindo.
somos um jardim a ser cantado
com predicados maiores que a penumbra que nos impede,
nos enfaixa à indiferença da raiva e do preconceito.
não me quero ocultar do que me entristece
da mesma maneira que não me oculto daquilo que me contenta,
porque do pensar nasce a compreensão e
da compreensão nasce a consciência.
porque pensas tanto?
talvez porque o desejo de saber minha consciência tem despertado
uma enorme vontade em pintar,
pintar minha paisagem com as minhas próprias cores.
uma ambição crescente que procura saber-me
num olhar para a sinestesia que é ser e sentir.


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Manifesto

tenho andado queimado pela abstracção,
aquela que dissimula o que por dentro ainda pouco fervilha,
a estúpida ansiedade.
que grito procuras?
que queres de mim, minha insensata afronta de criança inquieta?
porque escolheste a minha rua?
porque entraste em mim em cada passo de vida?
grita!
se és mais celebre, grita,
mas não me enfraqueças porque não quero mais esta luta.
minha recusa é tua, meu repugne é teu,
até porque és cada vez mais frágil,
sua asna condição de nascença.
não te dou mais nada,
por muito que te alimentes de mim já te conheço.
foi preciso desabar para te saber,
sua cobarde, sua perversa de engenho.
enquanto me acompanho só,
enquanto me encontro com minha própria compreensão,
te destruo.
vais ficando cada vez mais irrisória, mais débil.
se não te alimento vais acabar por morrer
e é bom que morras, inteiramente!
tenho aprendido a solidão como uma nascente de crescimento profundo,
bebendo dela a secura do que ainda não domino.
não te subjugo, não te condeno,
mas vais voltar à ordem,
maldita ansia.
megera!
quero-te calada!
quero-te sentada no mesmo lugar da aflição dos outros, quieta!
vejo que ainda não tiraste sentido ao significado de quietude
mas serei mais paciente do que a tua impaciência,
serei mais calmo do que o teu bramido ridículo
e assim cairás insignificante.
quando te ganhar serei eu completamente,
sem ruídos de fundo.
aquele que tu conheces.
sem a cobarde gritaria que me importuna esta tão calma
melodia de querer ser eu e tu em perfeita melancolia.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Fluxo

neste estranho ruído de caminhantes desconhecidos,
paralelos à fila presa na hora certa do costume,
neste fluxo de vida que me detém,
eu caminho.
paro para ver as mãos que se dão
num gesto que se perde no barulho.
rua feita de olhares presos à maquinaria tecnológica encarquilhada de botões.
calçada engastada onde se encenam os sorrisos dos amigos,
onde se eleva o companheiro chão dos solitários.
perdem-se nos dias os pesados momentos daqueles que num sorriso acreditavam.
encontra-se no acaso a alegria de quem se agarra a um olhar,
lugar duo,
sonho uno dos caminhantes enamorados.
há quem suba apressadamente
num contraditório teimar aos que lentamente descem pela rua.
há quem corra num corte certo,
há quem pare, como eu, circunspecto,
mirando a insensata coreografia improvisada do mundo.
num passo de gigante corremos numa grandiosa arte que é viver!
neste fluxo de caminhantes,
circundantes na mesma roda imperfeita,
eu caminho…

sábado, 4 de outubro de 2014

Incógnito

Quiseram dar um nome ao que sentia,
à dor que me acompanhava.
Sim, não minto.
Amor.
Amanha correrei para ser teu,
mesmo que ainda sejas incógnito.
Hoje corro para ser meu,
achando um sentido mais claro para aquilo
que só se resolve com o teu sorriso.
Um sorriso desconhecido,
guardado no futuro da minha sorte,
simples imprevisto do novo acaso.
Arrumar, desarrumar.
Amar, desamar.
Ter, perder.
Ando na roda viva com o mundo.
Se a vida corre em pequenos momentos
deixarei que ela me preencha
até que a sorte me deixe falar novamente.
Antes da noite chegar iremos dançar, soltos pela coragem.
Iremos correr como crianças com vontade de percorrer o mundo.
Anda, acompanha meu passo.
Posso fazê-lo sozinho mas ambos sabemos que precisamos de nos perder nos olhos do outro para que as palavras se coincidam, num sentido só nosso.
Te darei o meu pior,
te darei o meu melhor,
sendo eu,
contigo,
em toda a extensão,
do ser e sentir.
Sim, eu caí e voltarei a cair uma vez mais, tentando uma última queda para a loucura que é amar. Porque meus passos precisam de ser teus.
Meus olhos precisam de te acompanhar mesmo sem te ver.
Talvez me encontres naquela floresta perdida, onde param teus olhos.
As tuas mãos recatadas tocam-me em sonhos. Sem rosto te encontro na esperança, sabendo que mais nenhum momento se irá igualar à sorte que iremos sentir.
Entretanto cá me aguardo,
controlando esta ânsia selvagem
que precisa de rédeas para não gritar tão alto.
Parado, escondido,
sossego novamente para te encontrar.
Rosto sem nome,
olhar sem fundo,
palavra sem destino…
E depois regarei nosso carinho,
cuidarei de teu sorriso,
darei harmonia à minha ânsia de sentir para te ver sempre junto a mim,
para me acompanhares,
para te abraçar nos fins de tarde,
para me cantares aqueles poemas que tenho imaginado enquanto durmo,
sem palavras.
Não te sei mas já gosto da tua voz.
Esses teus lábios deixam-me feliz,
mesmo sem nunca os ter tocado.
Não te conheço e já te anseio.
Encontro-me entre os silêncios das palavras,
ao encontro do conteúdo que as faça crescer,
para ser eu em viva cor.
Apenas tu comigo,
apenas eu contigo.
Só nos dois.


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Mecânica de Seres

Mecânica de seres,
na hora da fuga te acho perfeita.
Teu barulho cai na ordem que se quer controlada e vazia,
num corte simétrico de sons que se encobre do estimulo.
Acordei da máquina uma vez mais e arranquei de meus braços os movimentos que me faziam correr num passo paralelo à sombra.
Cada vez que oiço aquele motor, aquele zunir,
oiço o silencio que se esconde no inconsciente,
que se desabita do estimulo.
Sou âncora agarrada ao maldito ranger que se assoma pela cidade.
Ser contaminado pelo impulso aparente do homem máquina que se julga avançado, sem nunca contrariar a sua própria rotação.
Caímos sempre no mesmo dia e noite,
no mesmo céu e sol que se quer igual e pacifico numa progressão lenta e calada.
A mecânica do homem é apenas essa.
O resto é entretenimento para os olhos,
no instante momento em que somos matéria.
Somos parte do barulho,
numa mecânica de seres.