sexta-feira, 22 de abril de 2022

M

    As paletas estão sujas com restos de tinta, já inútil. Aqui pinta-se sem se conhecer o destino do pincel. Os cadernos estão atestados de palavras repetidas, ideias soltas, folhas rasgadas. Cadernos amontoados, engelhados - objetos vagabundos afeitos ao desejo.
Por todo o quarto há vestígios desse anseio de escuta. A cama mal feita denúncia a memória. É deixada ao abandono todas manhãs. O abandono é comum nesta cama, neste quarto, nesta casa. As gavetas estão desarrumadas. A mente desarrumada. Este quarto denuncia-me.

    As noites repetem-se maioritariamente frias. A janela antiga, torsa, teima em fraquejar no seu isolamento. Assim como eu. Também teimo em fraquejar. O teclado, omisso a um canto, é bom servente. Amontoa o pó da repetição dos dias e já se queixa da força dos meus dedos. O chão do quarto é palco para as danças, para as caminhadas circulares infinitas, para os fios entrelaçados da maquinaria, que se abraçam constantemente. 

    O quarto mudou. Transfigurou-se para norte. As paredes mudaram a sua dimensão, assim como as janelas, assim como a cama que continua mal-amanhada. Parece que tudo mudou, mas tudo se manteve. Os cadernos continuam a ser vagabundos, tristes escravos das minhas ideias. A curiosidade pinta de novo a folha em branco, suja de novo a paleta das ideias. Palavras repetidas, ideias soltas, folhas rasgadas. 

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